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segunda-feira, 25 de março de 2019

O mundo desconhecido em que são educadas as Testemunhas de Jeová


"Lembro-me de ser miúdo, olhar para um estádio de futebol cheio e pensar angustiado que aquelas pessoas iam ser todas destruídas porque se calhar nenhuma era Testemunha de Jeová", lembra Vítor Máximo. "As Testemunhas de Jeová acreditam que o mundo de Satanás vai acabar e que só elas sobreviverão ao Armagedão, passando com vida para o Paraíso",explica M.M.,ex-ancião, um dos mais altos cargos na hierarquia da organização, que pede anonimato com receio de represálias para a família, que continua na religião.
Todos os crentes são habituados a esperar pelo fim do mundo desde crianças. A essa permanente angústia, os miúdos juntam as várias coisas que estão impedidos de fazer na escola e o pavor de ofender Jeová. Entre as proibições (como aos adultos), estão a celebração de aniversários, Carnaval, Páscoa, Natal, fim de ano e todas as outras datas de origem pagã, que a religião despreza porque, conforme explica à SÁBADO Pedro Candeias, um dos representantes da organização em Portugal, não são mencionadas nas Escrituras.
Uma jovem de 20 anos encontra-se em estado crítico, em coma induzido, numa unidade de cuidados intensivos em Huesca, Espanha, por recusar transfusões de sangue. Em causa estão as suas crenças religiosas. A mulher, testemunha de Jeová, foi submetida a uma operação cirúrgica há dias atrás, escreve o El País.
Leia o Artigo do jornal Sabado
Sabado (Sobre os Homossexuais)
Sabado (mais)
P.T. lembra-se de andar na escola primária e fingir que cantava os parabéns aos colegas, mexendo os lábios e esquivando-se a bater palmas. Mesmo assim, só por estar presente temia "ser destruída". César Rodrigues fazia o mesmo e, para evitar perguntas sobre a sua festa e presentes, não dizia quando fazia anos. Ambos contam como agora, que se afastaram da religião há seis e dois anos, respetivamente, celebram todos os aniversários com o maior entusiasmo: "Faço questão de ter sempre um grande bolo.São30anos? Sopro 30 velas!", diz P. T. César festeja com igual euforia, mas ainda hoje não consegue cantar os parabéns. "É como se estivesse a fazer algo de mal. Sei que não estou, mas não consigo evitar este sentimento de culpa. Nunca cantei os parabéns na vida."
O maior terror das crianças Testemunhas de Jeová é o Natal, antecedido de atividades como pinturas, composições, festas ou teatros. Não podem participar em nada. "Lembro-me como se fosse hoje dos meninos todos em grupo a fazer enfeites para colar nas janelas da sala de aula e eu sozinha de lado, a fazer outra coisa qualquer",conta P. T. Por se considerarem politicamente neutras, as Testemunhas de Jeová não votam em partidos políticos– nos países em que ir às urnas é obrigatório, são incentivadas a votar nulo ou em branco. Também não saúdam a bandeira nem cantam o hino. "Lembro-me bem: no 3.º ano, todos de pé a aprender o hino e eu supernervosa, só a mexer a boca", recorda P. T. A organização não encontra motivo para o embaraço infantil: "Sendo esses valores baseados na Bíblia, que razões teriam para sentir vergonha?", questiona Pedro Candeias.

As leituras interditasArtes marciais, que se considera ensinarem a violência, são interditas. E, com base numa passagem bíblica interpretada como Deus não gostando que os homens concorram entre si, a prática de desportos de competição também é desencorajada. É das coisas que César Rodrigues mais lamenta: "Era sempre escolhido para a seleção de futebol da escola, mas era impensável treinar num clube", conta este co-fundador do fórum Testemunhas de Jeová (http://testemunhasdejeova. forumeiros. com. pt) .
Já com mais de 600 usuários, o fórum surgiu para denunciar todas estas situações e apoiar antigos membros. Em Portugal, onde há 52 mil Tes temunhas de Jeová, é o primeiro, mas noutros países da Europa, no Brasil e nos Estados Unidos, há muitos, há vários anos.
Também há livros e documentários reveladores do funcionamento da religião. É o que este grupo que recentemente se organizou pretende em Portugal: "Queremos que as pessoas percebam que as Testemunhas de Jeová não são tão inofensivas como parecem as senhoras que distribuem revistas na rua", explica um dos fundadores.Todos os conteúdos místicos e esotéricos são considerados um perigo para a espiritualidade. Livros como O Senhor dos Anéis ou Harry Potter não são para abrir. Quando a família de P. T. entrou para a religião, os anciãos foram livrar-lhes a casa da presença de Satanás. Entre o vestido de noiva que a mãe usara no casamento católico, todas as fotografias desse dia e qualquer outra em que aparecesse um crucifixo (para os fiéis a Jeová, Cristo morreu numa estaca) , nada escapou: foi tudo queimado num bidão de metal, até a sua coleção de livros da Anita. "Daí para a frente, só lia a Bíblia e as revistas da religião."
As Testemunhas de Jeová acreditam que A Sentinela, a Despertai! e todas as publicações da organização transmitem a palavra de Deus com a mesma validade que a Bíblia. "Quanto mais cedo começarem o estudo, melhor, para já irem ensinadas para a escola. Há grávidas que lêem o Meu Livro de Históricas Bíblicas em voz alta para os bebés que têm na barriga", revela R. M., outra desistente.
Vítor Máximo, crente durante mais de 35 anos, recorda- se das tardes de quarta- feira passadas a ler as revistas; P. T.  estudava- as com o pai aos sábados à tarde, depois da pregação. A pregação porta a porta é uma atividade fundamental e incontornável para qualquer Testemunha de Jeová, pois é a única maneira de levar a "Verdade" a mais  pessoas, poupando-as no dia do Juízo Final.
O fim do mundoAcreditando nisso, aos 12 anos G.C.desatou a estudar a Bíblia fervorosamente. A mãe convertera-se e ele também. Acatou os fortes incentivos da organização para se distanciar das pessoas do Mundo (as que não são Testemunhas) e afastou- se de todos os amigos. De um momento para o outro, recorda hoje, deixou de brincar na rua e passou a vestir fato e gravata para ir às reuniões e a andar de pas- ta na mão para bater às portas.
Em menos de um ano estava a entrar, de fato de banho e T-shirt branca, na piscina de Algés, em Lisboa. Com uma mão em cima da outra e as duas a tapar o nariz, submergiu totalmente, deitando-se para trás dentro de água. Quando veio acima estava batizado – acabara de se tornar ministro do reino de Jeová. "É uma dedicação incondicional para toda a vida: ser um escravo de Jeová e tudo fazer em favor Dele", lembra mais de 30 anos depois desse momento.
No Verão seguinte, dedicou-se em exclusivo à pregação. "Eu levava as coisas muito a sério porque estávamos perto do fim do mundo.  Pensava: ‘É  preciso sacrifícios, vamos fazê- los’", conta G. C. , que foi ancião durante quase 20 anos.
Desde que a religião foi fundada, em 1879, as Testemunhas já esperaram que o mundo acabasse em vários anos. Sempre que as datas passaram sem que alguma coisa acontecesse, o Corpo Governante (entidade atualmente composta por oito homens, que é o núcleo administrativo da religião nos Estados Unidos) emitiu um novo "entendimento", inquestionável. "Estão sempre a repetir que a dúvida é um dos laços do Diabo", explica R.M. Invariavelmente, mas sempre a posteriori, a cúpula da organização nega ter feito qualquer previsão concreta e, apesar de os textos das revistas oficiais da religião terem sempre mencionado os sucessivos anos em que o mundo acabaria, diz- se que a expectativa decorreu da má interpretação dos fiéis. A última data mundialmente difundida para o Armagedão, com muitas famílias a vender tudo o que tinham para se dedicarem em exclusivo à pregação e garantirem a passagem para o novo mundo, foi 1975. Depois nunca mais se referiu um ano específico.
"Eu perdi a minha vida"Com o mundo a poder acabar a qualquer altura, as Testemunhas de Jeová vivem ao mesmo tempo na expectativa do recomeço de uma nova vida e apavoradas com esse momento. Porque, mesmo para o povo eleito, o acontecimento implicará grande sofrimento. Uma revista Despertai!, de 2005, avisa:"O arsenal de Deus inclui neve, saraiva, terramotos, doenças infecciosas, aguaceiro inundante, chuva de fogo e enxofre, confusão mortífera, relâmpagos e um flagelo que causará o apodrecimento de partes do corpo." Além disso, o Paraíso só está ao alcance de quem não tiver "culpa de sangue", ou seja, quem não estiver a falhar nos preceitos da religião. "Eu perdi a minha vida! Não fazia nada com medo de ofender Jeová e ser destruída", afirma P. T. Vítor Máximo conta que desde criança, e mesmo em adulto, acordou várias vezes a meio da noite "a chorar, com pesadelos com o Armagedão".
A grande prioridade das Testemunhas de Jeová é estudar e divulgar os mandamentos de Deus de maneira a salvar o maior número de pessoas possível. Por isso, são altamente desincentivadas a investir em atividades que, para a organização, apenas servem para roubar tempo ao testemunho porta a porta e de nada valem perante o fim de tudo. Quem vai para a faculdade mostra que está fraco na fé e passa a ser olhado com desconfiança.
Quando Vítor Jacinto decidiu licenciar-se em Engenharia Química, passou a receber visitas de anciãos e superintendentes de circuito (que supervisionam várias congregações) quase semanalmente. A sua biblioteca fazia-lhes particular confusão. "Diziam que aqueles livros continham ensinamentos não cristãos e queriam que me desfizesse deles. Foi aí que começou a minha grande guerra contra eles." Os livros ficaram, o curso foi acabado, deixou de ir às reuniões. Investir na carreira é encarado como outra afronta a Jeová. "Das coisas que me faziam mais impressão era ver pessoas subir à tribuna e contar, cheias de orgulho, que tinham recusado uma promoção para não prejudicar a sua vida espiritual.", revela R. M.
Outro exemplo de dedicação à religião incutido nas reuniões e nas revistas é o desincentivo que a organização faz a que se tenha filhos: por um lado, são grandes consumidores de tempo; por outro, não é aconselhável pôr crianças num mundo que vai acabar. Para G. C., isso ficou claro no dia do casamento. Depois de uma adolescência em que não podia beijar nenhuma rapariga, nem mesmo como cumprimento, na cara, e de um namoro com alguém da mesma congregação, sempre na presença dos pais e sem um único beijo na boca, casou-se num Salão do Reino. "O ancião que fez o discurso disse que de forma nenhuma deveríamos ter filhos, porque estamos no tempo do fim e era uma atitude pouco sábia, pouco espiritual."
Só contrariou a instrução mais de 10 anos depois, quando a mulher começou a ficar clinicamente deprimida com receio de já não conseguir engravidar por causa da idade. "Os casais que decidem ter filhos são criticados pelos outros que optam por não ter em virtude das orientações da organização", revela M. M., outro ex-ancião. "Conheço casais que não têm filhos e que agora já não podem e outros que continuam na expectativa de vir o fim para depois poderem ter um filho. É horrível", afirma G. C.
Este antigo ancião deixou o cargo e as reuniões há cinco anos. Tecnicamente, está inativo, situação de quem não entrega há seis meses relatórios com o número de publicações que distribuiu e de horas que pregou. O seu mal-estar com a religião começou quando, numa formação para cerca de 200 anciãos, lhes foi ordenado que escrevessem na página do manual sobre o abuso sexual de menores: "Sempre que surja um caso de pedofilia, contactem de imediato a filial [ a sede, em Alcabideche, Cascais]." Perguntou: "Mas a pedofilia é crime, não deveria denunciar-se à polícia?" Responderam-lhe perentoriamente: "Nós não denunciamos os nossos irmãos. As ordens são estas, escreva isso aí."
No manual dos anciãos a que a SÁBADO teve acesso, está impresso: "Se o acusador ou o acusado não estiverem dispostos a reunir- se com os anciãos, ou se o acusado continuar a negar a acusação de uma única testemunha e a transgressão não tiver sido comprovada, os anciãos devem deixar o caso nas mãos de Jeová. " Esta política de não divulgação valeu recentemente às Testemunhas de Jeová a condenação à maior indemnização alguma vez paga nos Estados Unidos a uma vítima de pedofilia: 22 milhões de euros. O tribunal considerou provado que a estrutura da organização tinha sabido e abafado ocaso.
A maior punição: a expulsão
Esta é das mais desconfortáveis questões no interior da religião. Outra é a da desassociação, ou expulsão– o pior que pode acontecer a uma Testemunha e aos seus familiares. O contacto com desassociados é simplesmente proibido, mesmo que sejam da família.

De possuída pelo demónio a prostituta, P. T., com cerca de 40 anos, ouviu os piores insultos da boca dos pais quando foi desassociada, em 2006. Proibiram na de voltar lá a casa. "Fiquei desnorteada, pensava que ia ser destruída, perdi a minha família e todos os meus amigos, que nem sequer me cumprimentavam. Como todas as pessoas que são desassociadas, fiquei sem ninguém."
"Jeová nos observará para ver se acatamos, ou não, seu mandamento de não ter contacto com nenhum desassociado", lê-se na revista A Sentinela de abril de 2012. "Um simples ‘Oi’ dito a alguém pode ser o primeiro passo para uma conversa ou mesmo para amizade. Queremos dar esse primeiro passo com alguém desassociado?", questionava a mesma publicação já em 1981 (as Testemunhas de Jeová guardam todas as revistas que consultam). "Tome sua posição contra o Diabo (...). Não procure desculpas para se associar com um membro da família desassociado, como, por exemplo, trocando emails", refere A Sentinela de janeiro de 2013.
O ostracismo a que os desassociados são votados pode originar problemas extremos. Dos oito antigos fiéis que a SÁBADO entrevistou (dois dos quais ex- anciãos), quatro tiveram de procurar ajuda médica para depressões e estados de ansiedade graves – alguns fizeram terapia, todos foram medicados. Dois pensaram no suicídio.
Vítor Máximo julgou que os pais se reaproximassem quando lhes comunicasse o seu segundo casamento. Afinal, deixaria de ser um "fornicador", um dos maiores pecados para a religião. Mas, como a mulher era uma mundana e ele um apóstata (abandonou a religião há cinco anos), os pais nem foram à cerimónia. "Nesse dia, quando cheguei a casa, em vez de estar a relembrar os bons momentos da festa sentei-me na beira da cama e desatei a chorar", lembra. Embora o expulsem, insiste em aparecer de vez em quando em casa deles, nos arredores do Porto, mas  na última vez que falou com o pai ele chamou- lhe adorador do Diabo e ameaçou ligar para a polícia caso voltasse. Durante muitos meses, a conversa ao jantar com a mulher terminava invariavelmente em lágrimas. Teve de ir ao psiquiatra e só superou a depressão com a ajuda de medicamentos.
Quem privar com um desassociado arrisca-se a ser expulso. Isso é ficar sem nenhuma rede social (família e amigos), porque as Testemunhas de Jeová não criam laços com pessoa do Mundo. Por medo do que pode acontecer aos familiares, algumas pessoas falaram para este artigo sob anonimato; outras não revelam a identidade porque estão afãs tadas mas não se querem dissociar (voluntariamente) nem ser desassociadas, sabendo que nesse momento terão de cortar relações com os que lhes são mais próximos.
As transfusões de sangue proibidasCésar Rodrigues, 38 anos, foi Testemunha de Jeová desde que nasceu e as suas dúvidas só surgiram há quatro anos, quando fez uma coisa que a organização desaconselha insistentemente: meteu-se num fórum de dissidentes brasileiros na Internet. "Para mim, aquilo era tudo mentira. Pensei: ‘Vou mostrar- lhes o que é uma verdadeira Testemunha de Jeová.’"Mas foi ele que acabou convencido. Uma das coisas que mais o chocaram foi perceber as incongruências na proibição de transfusões de sangue, que já provocou a morte a um número incalculável de crentes.

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